* Breves considerações sobre a possibilidade de afastar-se a incidência da Súmula 377/STF mediante pacto antenupcial, e a hipótese dos cônjuges submetidos ao regime da separação obrigatória de bens, a quem não se permitiu fazer pacto antenupcial e que agora pretendem afastar a incidência da súmula.
Questão que há anos vem suscitando dúvidas é a da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal no regime da separação obrigatória de bens, nos casamentos celebrados sob a égide do Código Civil de 2002.
Para tratar desse assunto faremos brevíssimas considerações sobre a disciplina legal do regime da separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.641 do Código Civil, passando a analisar o sentido e o alcance do enunciado da Súmula 377/STF relativamente aos casamentos em que, à luz desse dispositivo legal, adotou-se o referido regime.
O art. 1.641 do Código Civil prevê que é obrigatório o regime da separação de bens, entre outras situações, para pessoas maiores de 70 (setenta) anos. O art. 1.687 do mesmo Código estabelece que “estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que poderá livremente alienar ou gravar de ônus real”.
Por força dessas disposições, uma vez adotado o regime da separação de bens, seja ela convencional (escolhida mediante celebração de pacto antenupcial) ou obrigatória (também denominada ‘legal’, pois decorre de imposição de lei), o patrimônio dos cônjuges será particular/próprio de cada um, ou seja, o casamento não refletirá na esfera patrimonial individual.
Ocorre que, a despeito da regra do art. 1.687 do Código Civil, acima transcrito, doutrina e jurisprudência passaram a divergir, surgindo entendimentos contrários à individualidade dos bens próprios de cada cônjuge, adquiridos na constância do casamento. Isto em razão do entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, em 1964: “no regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento” (Súmula 377).
A discussão se deu, basicamente, quanto aos seguintes aspectos:
– Para alguns, a Súmula 377 contraria a regra do art. 1.687 do Código Civil, pois impõe a comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento, no regime da separação obrigatória de bens;
– Para outra corrente, para que não se esvazie a regra do art. 1.687 do Código Civil, a Súmula 377 deve ser aplicada somente quando comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição dos bens. Estaria justificada, assim, a suposta contrariedade ao art. 1.687 do Código Civil, autorizando-se, desde que demonstrado o esforço comum, a partilha dos bens adquiridos na constância do casamento, quando do divórcio ou do falecimento do cônjuge.
A discussão no âmbito da doutrina e da jurisprudência gerou insegurança jurídica, e o Judiciário buscou uniformizar os entendimentos, tanto no âmbito dos Tribunais locais, quanto no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Na jurisprudência, mesmo sob a égide do Código Civil de 2002, por força do enunciado da Súmula 377/STF, passou-se a admitir, no regime da separação obrigatória de bens (Código Civil, art. 1.641), a comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento (denominados aquestos).
De início, os tribunais aplicavam a Súmula 377/STF – comunicando-se os aquestos – independentemente da demonstração de esforço comum dos cônjuges para a aquisição dos bens.
Nesse sentido, veja-se trecho de acórdão do Superior Tribunal de Justiça: “(…) no regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF).” [STJ, 3ª Turma, AgRg no AREsp 650.390-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 27.10.2015, DJe 03.11.2015]
Segundo esse entendimento, o regime da separação obrigatória de bens se aproximaria do da comunhão parcial de bens, em que se comunicam os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento. A prevalecer esse entendimento, estaria sendo desvirtuado o regime da separação obrigatória de bens que, com intuito protetivo, estabelece de forma cogente a ausência de comunhão.
Além disso, o entendimento de que o esforço comum deve ser presumido (e em regra o é) conduziria à necessidade de se fazer prova negativa no sentido de que o cônjuge em nada contribuiu para a aquisição dos bens, na constância do casamento. A dificuldade em se fazer prova negativa tornaria praticamente impossível separarem-se os aquestos.
Depois de muita discussão e divergência, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça evoluiu no sentido de se exigir a comprovação de esforço comum para que se comuniquem os aquestos no regime da separação obrigatória de bens. Cite-se trecho do acórdão da Segunda Seção que sedimentou essa posição no âmbito do STJ:
“(…) a Súmula 377/STF, no contexto dessa divergência, pode ser interpretada de duas formas: 1) ‘No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento’, sendo presumido o esforço comum na aquisição do acervo; e 2) ‘No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento’, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.
(…) Exatamente acerca desse aspecto, prova ou presunção do esforço comum na aquisição do patrimônio, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, embora já se tenha pacificado acerca do direito a comunhão dos aquestos no regime da separação obrigatória de bens, decorrente da exegese da Súmula 377 do STF, diverge no tocante à comprovação de esforço para a construção do patrimônio, ou seja, o cônjuge interessado na partilha deve comprovar sua efetiva contribuição, ou a simples comunhão de vida, ainda que de curta duração, implica a presunção do esforço.
(…) Desse modo, cabe definir se a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento ou da união estável depende ou não da comprovação do esforço comum, isto é, se esse esforço deve ser presumido ou precisa ser comprovado. Noutro giro, importa esclarecer se a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, ou se a dita comunicação é a regra, por se presumir o esforço.
Ora, a adoção da compreensão de que o esforço comum deve ser presumido (por ser a regra) conduz à ineficácia do regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, pois, para afastar a presunção, deverá o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na constância da união. Torna, portanto, praticamente impossível a separação dos aquestos.
Por sua vez, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, parece mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente adotado no Código Civil de 2002, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens. Caberá ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva).” [STJ, 2ª Seção, EREsp 1.623.858-MG, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018 (g.n.)]
Esse entendimento vem sendo reproduzido em acórdãos mais recentes. No âmbito do STJ, veja-se:
“A jurisprudência desta Corte encontra-se consolidada no sentido de que, no regime de separação obrigatória de bens, comunicam-se aqueles adquiridos na constância do casamento desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição, consoante interpretação conferida à Súmula nº 377/STF.” [STJ, 3ª Turma, AgIn no AgRg no AREsp 233.788-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 20.11.2018, DJe 21.11.2018]
Em síntese, sedimentou-se o entendimento de que, no regime de separação obrigatória (ou legal) de bens, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.
Chamamos a atenção, contudo, para o trecho do acórdão da Segunda Seção, em que se afirmou que o interessado, para demonstrar o esforço comum, deverá “comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado” (EREsp 1.623.858-MG). A observação de que a participação na aquisição do bem, ainda que efetiva e relevante, não precisa ser financeira, gera certa insegurança no tocante ao que se considerará prova do esforço comum, a se admitir a comunhão dos aquestos.
Hipótese que nos pareceu relevante apontar, é a da possibilidade de afastar-se a incidência da Súmula 377/STF mediante pacto antenupcial, prevendo os noivos, assim, a absoluta incomunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento.
Nos termos do art. 1.639, caput, do Código Civil, “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. É lícito aos noivos, portanto, celebrar pacto antes do casamento (Código Civil, art. 1.653), dispondo sobre seu patrimônio. A restrição legal que se faz a essa autonomia da vontade é relativa à impossibilidade de afastarem-se, mediante celebração de pacto antenupcial, regras cogentes sobre o regime de bens adotado. Assim, segundo o disposto no art. 1.655 do Código Civil, “É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei”. Logo, não seria possível, por exemplo, fazer estipulações que afastem a incidência do regime da separação obrigatória de bens, em desobediência à regra do art. 1.641 do Código Civil.
Da interpretação dessas regras se extrai que não haveria qualquer problema em se afastar a incidência da Súmula 377/STF mediante pacto antenupcial, pois tal disposição, em verdade, respeitaria e até ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória de bens, impedindo-se que o patrimônio dos cônjuges se comunicasse.
Mas essa questão nem sempre foi pacífica. Para parte da doutrina e, principalmente, na jurisprudência, entendia-se que, simplesmente por ser obrigatória a separação de bens, o pacto antenupcial eventualmente celebrado seria nulo por violação à lei.
Ocorre que, por outro lado, se a disposição legal que prevê o regime da separação obrigatória de bens visa proteger quem se casa, e a Súmula 377/STF constitui redução dessa proteção, na medida em que admite hipótese de comunhão dos aquestos, a celebração de pacto antenupcial viria a restabelecer a proteção, com a separação absoluta de bens. Essa interpretação não apenas não viola norma cogente, como respeita a finalidade da lei.
Para solucionar essa questão, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Pernambuco editou o Provimento nº 8, de 2016, que, invocando em seus ‘considerandos’ lições de Zeno Veloso, assim dispôs:
“No regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial.
Parágrafo Único. O oficial do registro esclarecerá sobre os exatos limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento.”
Nesse mesmo sentido, em dezembro de 2017, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100, decidiu:
“Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória”.
Na linha do que se fez nos Estados de Pernambuco e de São Paulo, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, no dia 03.09.2019, publicou o Provimento nº 212, de 02.09.2019, admitindo que os noivos maiores de 70 (setenta) anos afastem a incidência da Súmula 377/STF mediante pacto antenupcial. Pelo Provimento 212, incluiu-se o art. 645-A ao Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul, com a seguinte redação:
“No regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial”.
Enfatize-se que, ao celebrar pacto antenupcial para afastar a incidência da Súmula 377/STF, o casal não se casa pelo regime da separação convencional de bens. Respeitando-se a exigência legal (de caráter protetivo), o casamento se dá pelo regime da separação obrigatória, com pacto antenupcial de separação de bens.
É importante que se faça tal observação, pois o regime de bens adotado no casamento impacta nos seus efeitos sucessórios. Segundo o disposto no art. 1.829, inciso I, do Código Civil, o cônjuge sobrevivente concorrerá com os descendentes na sucessão do outro cônjuge quando casado pelo regime da separação convencional de bens, mas não quando casado pelo regime da separação obrigatória de bens.
Em suma, permite-se aos noivos atingidos pela regra do art. 1.641 do Código Civil, afastar, mediante pacto antenupcial, a incidência da Súmula 377/STF, devendo ser mantidas todas as demais regras relativas ao regime da separação obrigatória de bens.
Significa dizer que, com o pacto antenupcial, o regime não passa a ser o da separação convencional de bens (que permitiria a concorrência sucessória entre cônjuge e descendentes), mas sim o da separação obrigatória com pacto antenupcial (prevalecendo, em matéria sucessória, a não concorrência do cônjuge com os descendentes).
Também nos pareceu relevante apontar, nesse contexto, a hipótese dos cônjuges submetidos ao regime da separação obrigatória de bens, a quem não se permitiu fazer pacto antenupcial, e que agora pretendem afastar a incidência da Súmula 377/STF.
Considerando-se que atualmente se admite a celebração de pacto antenupcial para esse fim, até mesmo para que não se fira a isonomia, entendemos ser possível a alteração do regime de bens, para que os cônjuges passem a adotar o regime da separação obrigatória de bens, mas sem a comunhão dos aquestos.
A alteração do regime de bens é admitida no Código Civil nos seguintes termos: “É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros” (art. 1.639, § 2º).
O Código de Processo Civil de 2015 apresenta de forma minuciosa, no art. 734, o procedimento para alteração do regime de bens do casamento. Está claro, no referido dispositivo do CPC, que o juiz deverá analisar cuidadosamente os motivos apresentados – conjuntamente – pelos cônjuges, para que não haja prejuízos a terceiros (art. 734, caput).
No procedimento de alteração do regime de bens do casamento, o CPC estabelece a necessidade de intimação do Ministério Público (art. 734, § 1º), deixando clara a preocupação com que se resguardem os direitos de terceiros. Prevê o CPC, além da publicação de edital que divulgue a pretendida alteração do regime de bens (art. 734, § 1º), que sejam expedidos mandados de averbação aos órgãos competentes, para que se registre publicamente a alteração realizada.
Na situação em análise, não vemos qualquer óbice à alteração, pois, em verdade, o regime permaneceria, afastando-se, tão somente, a incidência da Súmula 377/STF a fim de que não se comuniquem os aquestos.
Ponderamos que, se a alteração do regime de bens não fosse possível, os cônjuges poderiam se divorciar, casar novamente e, assim, celebrar o pacto antenupcial que o sistema jurídico agora autoriza. Mas, certamente não seria razoável exigir-se um divórcio, se a questão pode ser solucionada mediante um procedimento de jurisdição voluntária expressamente previsto na lei.
Deve-se ter presente, portanto, que há mecanismos de que podem lançar mão os cônjuges para assegurar que sua intenção seja respeitada. Aos cônjuges, livres para manifestar sua vontade e respeitando-se os limites impostos na lei, deve ser permitido avaliar se o regime de bens por eles adotado atende, efetivamente, os seus interesses.
Do que aqui brevemente expusemos, é possível concluir:
– A despeito da regra do art. 1.687 do Código Civil (sobre a individualidade dos bens de cada cônjuge no regime da separação de bens), por força do enunciado da Súmula 377/STF, admite-se, no regime da separação obrigatória, a comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento;
– Sedimentou-se, na jurisprudência, o entendimento segundo o qual, no regime de separação obrigatória de bens, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição;
– Nas hipóteses em que a lei impõe o regime da separação obrigatória de bens (Código Civil, art. 1.641), permite-se aos noivos, por meio de pacto antenupcial, afastar a incidência da Súmula 377/STF, prevendo a absoluta incomunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, mantendo-se todas as demais regras relativas ao regime da separação obrigatória de bens;
– Com a celebração de pacto antenupcial para afastar a incidência da Súmula 377/STF, o regime não passa a ser o da separação convencional de bens, mas, sim, o da separação obrigatória com pacto de separação dos aquestos (prevalecendo, no tocante à sucessão, a não concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes).
– Aos cônjuges que não celebraram pacto antenupcial para afastar a incidência da Súmula 377/STF (pois não lhes foi permitido), sendo essa a sua vontade, deve ser assegurado o direito de alterar o regime de bens, mediante o procedimento previsto no art. 734 do Código de Processo Civil, passando-se a adotar o regime da separação obrigatória de bens, sem a comunhão dos aquestos.